Eles não são lobos, nós não somos cordeiros
Minha fadiga do maniqueísmo metafórico moralista na abordagem da política
Esse post é fruto de um tanto de frustração. Escrevi meio com o fígado, meio com o pé, porque tava dando soco na parede de raiva).
Canis lupus, Aenocyon dirus, Ovis aries, Homo sapiens.
Apenas dois meses atrás, fomos tragados pelo (suposto) último grande avanço científico da engenharia-genética-parque-dos-dinossauros-shit: ressuscitaram o Aenocyon dirus, o Lobo Terrível, inspiração de George R. R. Martin para os lobos cinzentos que alegoricamente pavimentam o desenvolvimento da série (e parte dos livros) Game of Thrones e As Crônicas de Gelo e Fogo. A notícia deixou em alvoroço todos os entusiastas pseudocientíficos, lacrou manchetes em portais de notícia, monopolizou a pauta por horas — o que é muito hoje em dia — nas redes sociais, fosse o TikTok, o ex-Twitter, os Reels e a timeline do Instagram, ou ainda aquela notícia encaminhada pela sua tia-avó no grupo da família.
A poeira baixou, o hype passou, e no fim foi “só” uma edição do DNA do nosso arquirrival de milênios, o Canis lupus, ou o lobão enorme do hemisfério norte (não confundir com o apequenado Lobão do hemisfério sul), que habita o Ártico e tem tudo a ver com o maltês e o vira-lata caramelo que você confina no seu apartamento. A história é senso comum: nós, enquanto espécie, precisávamos de segurança, amor, fofura e, assim como os Homo sapiens (e possivelmente os neandertais), nem todo Canis lupus era um troglodita selvagem. O aftermath nos deu o Yorkshire de um lado e o fascismo do outro, ambos coexistindo mesmo em 2025.
Nessa interação milenar, o Canis lupus e, possivelmente, o Aenocyon dirus (antes de sua falsa ressurreição), além do próprio George Martin escritor, inspiraram inúmeros contos de terror por aí — inclusive Os Três Porquinhos e Chapéuzinho Vermelho, vestido de vovó e tudo, tanto ameaçando comer a Chapéuzinho quanto… comer a Chapéuzinho (os anos 1800 foram complicados, e os Irmãos Grimm fizeram questão de registrar toda sorte de imaginação questionável); o gibi dos 300 de Esparta; o famoso “dentro de você existem dois lobos”, seja na abordagem recente dos coaches, seja na possível origem em culturas nativas da América do Norte; e, claro, o lobisomem. Obviamente, também o evangelho de Mateus (7:15): “Acautelai-vos dos falsos profetas, que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores.”
Nessas, os dóceis e deliciosos caprinos, os Ovis aries, tornaram-se esse símbolo de impotência e pureza. E, sejamos honestos, ninguém nunca perguntou aos cordeiros se eles queriam ser sinônimo universal de pureza, passividade, docilidade e, não raro, burrice coletiva. O bicho, na prática, foi domesticado não por suas virtudes, mas porque é basicamente um quadrúpede altamente lucrativo: come mato, fornece lã, carne, leite e aceita ser tosqueado sem grandes dramas existenciais.
Sua conversão simbólica em arquétipo de inocência serviu mais aos interesses de quem queria justificar hierarquias (pastores e suas ovelhas, reis e seus súditos, deuses e seus fiéis) do que a qualquer realidade biológica.
Mateus, ao opor as duas espécies metaforicamente, criar o mito do lobo que se mistura ao rebanho e, por fim, vincular o carnívoro à pecha de vilão e o herbívoro à submissão de seus fiéis, colocou em curso uma agenda favorável à elite. Há de se notar que provavelmente nem foi o próprio Mateus discípulo quem escreveu seu evangelho, mas alguém que leu Marcos e usou da necessidade da igreja nascente em angariar fiéis humildes e não se indispor com a estratificação social — prometendo o paraíso pós-morte aos que mais sofrem. Por que se preocupar com as necessidades humanas imediatas se a eternidade nos Braços do Pai parece muito mais confortável e definitiva?
E assim temos moldado nossa moral ocidental ao longo dos milênios: aos lobos atuantes em sua própria pele ou na de outrem, a desgraça infernal; aos cordeiros relentos, inócuos, a promessa da recompensa do intangível.
Mas nós não somos cordeiros — nem puros ou de absoluta inocência, tampouco inofensivos. E se opor e contrariar as estruturas e superestruturas que mantêm o status quo não deve ser vilanizado, ao contrário. Assim como eles não são lobos, predadores mortais impossíveis de encarar.
Gaza, Irã recentemente; a América Latina ao longo de décadas; Líbia, Iraque e o Afeganistão; a população negra, a população pobre marginalizada, os povos originários de um sem-número de lugares aqui e mundo afora.
Ao se organizar e contrariar os detentores da bíblia da moral cristã, todos são vilanizados, tornam-se inimigos.
E ainda hoje, por má-fé ou só costume, o maniqueísmo continua a orientar a comunicação. Eles são maus: os aiatolás e seu regime; o Hamas e seus métodos; e todos os produtos da interferência ocidental. Ousar responder é crime, antidemocrático, contra os direitos humanos estabelecidos e ditados.
Getúlio é o pai dos pobres, Lula, o conciliador de classes, Mandela, o mito da redenção. Jesus Cristo, ora o refugiado errante que prega o amor, ora a espada retórica do conservadorismo intolerante — eles não conseguem se decidir.
Em alguma medida, todos eles podem ser essas coisas, figuras, símbolos — por vezes por merecimento, outras por necessidade.
Mas não são só o que dizemos que são, mas muito mais. Para o bem, frequentemente; para o mal, se assim for decidido.
Exaltar e canonizar as figuras populares — demagógicas ou não — é uma demanda social, quiçá humana; uma resposta convergente ao difusamente imposto pelos ricos que maquinaram a engenharia política que dita os passos de nossas vidas.
Mas em última instância, é infantil. E essa tendência infantil parece ter tomado conta da retórica geral da comunicação, inicialmente da direita, e agora da esquerda, como resposta “à altura”. Os memes por si só simplórios mostram que a comunicação tende a essa simplificação de temas complexos.
Porr*, tivemos que lidar com mamadeira de pir*c4 nas eleições de 2018 e ano que vem vai ser pior.
E é só isso mesmo por hoje. Eu e minha frustração.
Até.